31.3.07

Gramática da vida real

Trabalhar, comer, ler, dormir.
A minha rotina dos últimos e muitos dias consegue reunir as três conjugações verbais e ainda há espaço para um verbo irregular.
As chatices que tenho tido com casa, trabalho, médico, cocó de cão, fazem parte dos exercícios para o pretérito perfeito composto, o presente que ainda não se livrou do passado.
Hoje, que é sábado, treino a família dos advérbios. Felizmente. Calmamente. Despreocupadamente.
Para a semana, terei quatro dias inteirinhos de feriados: férias. O futuro simples.

Agora que penso nisso, não há nenhum Presente Composto. Devia haver. Assim as pessoas complicadas já podiam desculpar a vida com a gramática.

Livro dos conselhos

Não sei de que serve pedir conselhos, se no fim nos dizem sempre

- Mas tu é que sabes.

All families are psychotic

"Everybody has basically the same family - it´s just reconfigured slightly different from one to the next."

"All families are psychotic", Douglas Coupland

Assim já fico mais descansada.

29.3.07

Sem título (duas mulheres)

Enquanto lavava as mãos, vi uma mulher mais velha que olhava para mim pelo espelho. De olheiras cansadas e rugas de preocupações prematuras
Deitada na relva, uma mulher, de corpo caído, de corpo atirado ao chão, deixado cair, resignado ao destino que não tinha conseguido tornear,
(as rugas e as preocupações),
expirada a última réstia de ar que lhe sobrava nos pulmões. Ao seu lado, uma mala de viagem com a pega virada para cima, colocada do lado da mão direita, poisada cuidadosamente na relva antes que o corpo se tornasse um peso morto e tivesse caído e ali se tivesse deixado ficar,
de um filho na barriga que eram as últimas semanas, o filho que não era mais do que um grande balão de ar que a fazia arquear as costas derreada pelo peso da vida,
a mala: a última testemunha do seu tempo de mulher ainda levantada. Antes de o comboio entrar no túnel, alguém que se acercava a passo urgente, o tempo de dois segundos,
como se só agora a vida lhe tivesse começado a pesar, como se até agora a tivesse levado a brincar.
o tempo de a ver cair, caída, já não sei o que veio primeiro, se eu que a vi cair, se ela que caíu antes de eu a ver caída.
Quando, ao voltar para trás, a procurei no mesmo sítio,
Enquanto lavava as mãos, antes do jantar,
encontrei a relva vazia.
uma mulher mais velha deixou de olhar para mim.

27.3.07

Lusco-fusco


Win Butler está doente. A tour europeia foi cancelada.
Lá se vai a minha expectativa de que a vida pós-concerto-Arcade-Fire melhorasse. Segundo um artigo do Y era isso que ia acontecer: haveria a vida antes do concerto e a vida depois do concerto. Na fronteira iríamos ver a luz.
Agora já não. Berlim escureceu de repente.

25.3.07

Berlinenses I

O Francês

Conheci-o dois dias depois de chegar à cidade. Como o conheci nesse dia, era como ele seria sempre. Se fosse a casa do Big Brother, amigos e família diriam dele que era “igual a si próprio”. Seja lá o que isso for. Mas a verdade é que ele sempre fez parte do mosaico das minhas experiências em Berlim, seja por ter sido o meu primeiro amigo em Berlim, a primeira pessoa com quem partilhei uma casa no sentido berlinense – o meu primeiro, mais longo Mitbewohner -, seja porque a combinação dos olhos em bico com a nacionalidade francesa sempre causaram muita admiração a quem quer que fosse lá a casa. Nós dizíamos aos outros que ele também sabia falar coreano, mas se houve alguém naquela casa que acabou por aprender alguns sons guturais dessa língua de caracteres redondos, fui eu. Garasenidá. Ou lá como é que se pronuncia.

O Mitbewohner multikulti. A verdade-cliché de Berlim.

Com ele aprendi a gostar de Berlim. Perdão. A gostar muito mais de Berlim. A paixão com que ele falava da cidade, a lista de eventos culturais que trazia decorada quando chegava a casa, as pessoas que me apresentava, os piqueniques em jardins infantis, os brunches em cafés russos, o fascínio pelas coisas boas da vida, boa comida, boa música, bom cinema, boas conversas em esplanadas ao sol, as muitas viagens que fazia, acabariam por convencer-me que não é preciso muito para se ser feliz aqui. Ok, uma conta choruda no banco ajuda bastante.
Com ele fui à minha primeira festa underground. Com ele vi o meu primeiro Wong Kar Wai. Com ele ouvi Air e De-Phazz pela primeira vez. Com ele comi sushi pela primeira vez. Com ele fumava ganzas depois do jantar para ajudar a dormir melhor (e via-o a lavar os dentes antes de fazer a ganza mais mal feita do mundo e adormecer na mesa logo a seguir a cinco bafos). Eu até sabia onde é que ele arranjava a droga. Cheguei a ir com ele para fazer de intérprete a um tal angolano para os lados da Torstrasse. Chegámos a dizer que éramos namorados, só porque eu gostava do olhar esgazeado que ele fazia nessas alturas: olhava-me como um cão com cio e mordia-me o braço. Eu ria-me. Até tenho uma fotografia assim, tirada numa festa qualquer pouco antes de ele se ir embora. Ia-se sempre embora no auge de uma festa, de repente, às vezes nem se despedia. Explicou-me que preferia ir-se embora quando estava a gostar a assistir ao cansaço da noite, quando as pessoas já não estão tão divertidas. Eu nunca fiquei chateada, nem quando uma vez me deixou sozinha numa discoteca, o cabrão. Mas só o compreendi muito mais tarde, quase antes do fim. Foi quando lhe disse que me ia embora.

Não o vejo desde o Verão. De vez em quando telefona-me, diz que gostava muito de me ver, mas a namorada é ciumenta. A namorada actual é a Mitbewohnerin que ele teve depois de mim. Sempre uma Mitbewohnerin, nunca um Mitbewohner. Dizia que não se dava bem com homens. Chama-lhe parvo. Pelo menos agora já não precisa de mentir quando diz que namora com a gaja que dorme no quarto ao lado.

22.3.07

O-que-vale-é-que-este-blogue-não-é-um-diário type of thing


Lottumstrasse, Berlin-Mitte

Frühling

A prima Vera gosta de brincar às escondidas, especialmente atrás de bonecos de neve, a cabra.

Agenda

A minha mete um bocadinho de medo.

20.3.07

Ulisses (capítulo VIII)

"É óbvio que pensas centenas de vezes numa pessoa e não a encontras. Como um homem a caminhar no sono."

Reviravolta # 1

Poucas horas depois de receberem a minha candidatura (a um anúncio que foi quase escrito para mim), enviam-me um e-mail a anunciar que já a encaminharam para a entidade competente e ainda me pedem compreensão e paciência pela demora da coisa. Se tudo demorar assim tanto tempo, creio que a minha vida vai mudar mais depressa do que eu pensava. Bom, ou não.

19.3.07

As portas de Berlim (última parte)

Hallesches Tor

Acho que a culpa só pode ser dos anos 80, homens que nasceram de pessoas com penteados à Fad Gadget sofrem indubitavelmente de uma falta de percepção para as coisas mais elementares do mundo. Como tudo o que diz respeito ao campo da sedução. Se-quê?
Pois é, estamos mal, estamos, isto antigamente não era assim. Hoje em dia, deve ser do pólen que anda no ar, os homens estão a perder as qualidades indispensáveis que nos têm feito gostar deles até agora. Não tarda nada, terei de fazer a medição das minhas tendências sexuais, pode ser que para o outro lado me dê melhor. As mulheres pelo menos ainda se masturbam com algum erotismo. E sabemos onde tocamos, quer-se dizer.
Eu até gosto deles, mas depois passa. E aqueles de quem gosto realmente, assim: realmente, esses nunca me ligam nenhuma, por isso também passa. Que remédio. Isto é sempre a porra das pessoas erradas. Ou então eu é que ando errada há uma carrada de anos quando acho que até tenho o direito de escolher uma coisinha melhor para mim do que muitos homens que por aí andam, como o pólen, que se vêem gregos para encontrar os pontos erógenos femininos, não conseguindo disfarçar uma ignorância crónica das artes da sedução. Se-quê?
Oh, brado aos céus, que desventura, que triste sina a minha, como é triste ser uma gaja tão nova e já estar tão fartinha de gajos obtusos que pensam serem eles quem nos chama a atenção, não tendo o discernimento suficiente para perceber que nós é que lhes atraimos a atenção, nós é que decidimos tudo, nós, sempre nós, e fazêmo-lo tão bem que eles pensam que o poder do mundo está é na mão deles, ah ah, senhor perdoa-lhes, vá lá... E se fossem só estes. É que depois ainda há os homens sem dinheiro. E os homens sem opinião. E os homens com mãos desengonçadas, desarranjadas, desconectadas dos estímulos cerebrais, des- e outras coisas. E os homens sem sentido de oportunidade. E os homens sem sentido do ridículo. E os homens mais novos. E os homens mais velhos. E os homens que ressonam. E os homens que não fazem barulho nenhum a dormir, que impressão. E os homens sem experiência. E os homens com muita experiência que nos enumeram as gajas com quem já foram para a cama, mas pensam que o clitóris está na virilha (é só garganta, olha: só garganta, e depois é andar à cata de moscas no tecto). Além disso, há ainda os homens que andam atrás de mim como as moscas que nunca há no tecto. E os homens que me ignoram. E os homens que me pedem – pedem! - para ir para a cama com eles, oh, brado com mais fervor aos céus e rasgo as vestes. E os homens que não querem ir para a cama comigo que, imagine-se, nem são gays: o apocalipse sem o cavalinho branco para me resgatar para o paraíso. E, finalmente (finalmente: vem aí o metro), os homens que dizem que sou má. Má. Querem lá ver. Uma cabra má. Se calhar até sou, como agora que estou a ser exageradamente má, afinal ainda há os homens decentes. Mas esses nunca gostam de mim.
O melhor de tudo é que não pareço. Má. Como agora, que entro no metro em Hallesches Tor, uma estação que não faz sentido algum: o metro de uma linha arranca quando o outro pára e depois são vinte minutos de espera, com sorte menos, de qualquer modo, um desperdício de tempo. Como certos homens.
Ámen.

16.3.07

Ulisses (capítulo VII)

"Apanhei uma constipação no parque. O portão estava aberto."

Ironia

Acordar às 6:30 da manhã com o despertador a cantar "I got the power".

15.3.07

Curtas Urbanas # 3



Christinenstrasse, Berlin-Mitte

14.3.07

Os dias ao sol


Com um dia destes, seria um sacrilégio fazer qualquer outra coisa que não fosse deixar os meus colegas com cara de quem vai para o sol “e vocês não”, tirar o casaco e sentar-me no canal,
am Kanal (sempre quis escrever isto),
no cimento e tudo, com os pezinhos a dar e dar, fazendo apostas de qual dos sapatos é que cai à água primeiro. O pato lá decidiu não se meter comigo, andava a rondar, o maroto, mas ainda apanhei uns belos sustos com os barulhos secos que ouvia de vez em quando ao pé da minha orelha esquerda. Depois de inspeccionar flora e fauna circundantes, cheguei à conclusão de que não se tratava de nenhum gafanhoto ou qualquer outro bicharoco-asqueroso. Só tenho é de comprar uns headphones novos.
Como diz o meu pai, parece que chegou a prima. Vera.
Ah ah.
Neste lado da Europa o sol costuma deixar-nos assim, tolinhos.

12.3.07

Schnapps

De certeza que vai chegar atrasado. Chega sempre atrasado. Odeio pessoas que chegam atrasadas. Fazer esperar alguém é uma maneira de mostrar que a sua vida é mais importante do que a dos outros, li uma vez algures. Eu digo mais: é uma falta de educação ser tão presunçoso.
Virá seguro do alto dos seus 24 anos. Não suporto pessoas mais novas do que eu. Falta-lhes a auto-estima da in-segurança dos 30. Não que eu me preocupe com isso, que ainda lá não cheguei, mesmo que goste de dizer que estou lá quase. Mas é o que vejo pelos meus amigos que nunca levam a sério alguém com a minha idade. É uma parvoíce. Como se as certezas se confirmassem aos 30. Eu até acho que deve ser o contrário. Sopramos as 30 velinhas e puff, esfumam-se as certezas e começamos a pensar em ter filhos. Mas comigo isso não vai acontecer. As minhas certezas já se esfumaram há muito tempo. Agora só pode melhorar.
Dizem que o sexo é melhor aos 30. Nas mulheres, claro, porque os homens começam a cansar-se mais depressa. Mal posso esperar. É chegar aos 30 e arranjar logo um puto de 20 anos. Para me acompanhar o ritmo, que senão morro de velha.
Ora aí está uma certeza que os 30 anos não me vão tirar: que não vou morrer de velha. Na melhor das hipóteses, de acidente de aviação. Na pior delas, de cancro do pulmão. Mas aposto é que morro esturricada daqui a 25 anos. Ou 10. Por isso é que eu acho que quando chegar aos 30 vou querer foder tudo aquilo que não vou poder aos 35 por causa do calor. Foder, ler e ver os clássicos, descobrir toda a música do mundo, escrever um livro enquanto ainda há energia eléctrica para ligar o computador e talvez, quem sabe, apaixonar-me, mudar-me com ele para o último sítio do mundo a ser engolido pelo sol e morrer nos seus braços sem me arrepender de nunca ter lido o Ulisses.
Ele chega. Atrasado. Eu digo-lhe: estás atrasado. Odeio esperar. Jantamos, conversamos, bebemos vinho. Depois há sexo. Bastante regular, normal nos homens de hoje. Explico-lhe a minha teoria, dou-lhe dicas. No sexo, os homens deviam conseguir controlar os seus orgasmos, para bem da humanidade. Nem que para isso tenham de pensar na Margaret Thatcher (Trainspotting) para não se virem depressa demais, ou na Monica Bellucci (verdade universal) para se virem finalmente. Eu não me importo, desde que não me contem. Ele ri-se.
Depois disso vai ficando e falando e bebendo, esperando que eu lhe diga que pode ficar cá a dormir. Não lhe digo. Sempre acreditei que deixar um homem passar a noite é sinal de desleixo. Convidar um homem a passar a noite, desespero puro.
Cinco da manhã e ele ainda cá está a beber-me o Schnapps todo. Há-de querer sexo outra vez. Mas eu ainda não cheguei aos 30. Até nem é pelo Schnapps, mas, porra, daqui a bocado é de dia e eu nem saí de casa.

Kinder-surpresa (cinema)

Consegui, finalmente, resgatar o dvd do clube de vídeo e não entendo porque é que Children of Men só esteve duas ou três semanas nas salas de cinema, na sessão da meia-noite.
(Ok, aqui não há sessão da meia-noite, era só para dar a ideia.)

Procuro Little Children nos cartazes de cinema e nada. Descubro nalgum site obscuro que só vai estrear em Abril. Finais de.

A surpresa vai para um filme sem "children" no título: Dans Paris. É que não há meios de cá chegar.

10.3.07

Manual dos apaixonados (o beijo II)

- Mas tu disseste-me: just do it.
- Sim, mas eu estava a referir-me a ti com outra pessoa, não a ti comigo, por amor de deus.

9.3.07

Gabarolas

Um ex-aluno telefona-me a contar-me do seu novo curso e confessa que eu fui a melhor professora que ele teve. Já não é o primeiro a dizer-me isso. Se calhar, é melhor ir começando a acreditar nesta gente...

Ulisses (capítulo IV)

"Espero que não seja demasiado grosso e não voltem as hemorróidas. Não, perfeito. Assim. Ah! Prisão de ventre."

Neon Bible III

Eu quero o concerto. Já.

Avestruz

Um e-mail que mudaria a minha vida a partir de Maio. Um telefonema que mudaria a minha vida a partir de agora. Estar temporariamente dependente da vontade dos outros é, por um lado, irritante. Por outro, é uma óptima maneira de enfiar a cabeça na areia e seguir com a minha vida, como se andar com a expectativa nos bolsos fosse normal.
O pior é que as temperaturas começam a subir. E daqui a nada vou deixar de vestir casacos com bolsos grandes...

Installateurmeister

Acabaram de me dizer que provavelmente terão de esburacar a minha parede. Alles klar. Mas para saber isso não era preciso ter acordado tão estupidamente cedo.

8.3.07

Se duas mulheres te oferecerem flores, isso é...

... (tentar) explicar à primeira porque é que o dia de hoje é apenas mais um dia. À segunda sorrir e recusar educadamente.
Porque a primeira ficou ofendida e porque, enfim, há coisas que não valem a pena às 8 da manhã.

7.3.07

As crianças com super poderes

Fumava o meu cigarro na varanda de um pátio alemão cheio de portas e portinholas, jardins indefinidos, tristes e abandonados, barraquinhas sorumbáticas e mesas e cadeiras que no Inverno pouco uso têm que não seja o de fazerem salpicar a água que cai do céu. Três crianças brincavam de gorro, cachecol e casaco que lhes agasalhavam os risos. Vi-as chegarem-se à rede que separava um pátio do outro e passarem para o outro lado, pensando que ninguém as via trespassar propriedade alheia. Devia haver um buraco no meio, que já lá estava ou que foram elas que o haviam aberto noutro dia, mas do sítio de onde eu estava só via uma árvore, por detrás da qual as crianças apareciam depois de atravessarem a rede como que por artes mágicas. Se me chegasse para o lado, podia ver o buraco criminoso, mas preferi pensar nelas como crianças com super poderes, que passavam para o outro pátio através da rede e não por baixo dela, uma vez para cá, outra vez para lá, muitas vezes. Observei-as, deslumbrada, até o cigarro acabar. Depois fui para dentro e tentei fazer o mesmo com o resto da tarde. Passar através dela sem a sentir e, como uma criança com super poderes, chegar à noite e adormecer no segundo imediatamente a seguir após o aconchegar dos lençóis aos sonhos cor-de-rosa.
Juro que tentei.

Ulisses (capítulo III)

"Depositou cuidadosamente o ranho seco tirado de uma narina no gume de uma rocha. Quanto ao resto, deixai olhar quem quiser."

5.3.07

Neon Bible II

Sinto-me overwhelmed.

3.3.07

Neon Bible

Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat. Repeat.

?

A Madonna, ela mesma, pediu-me para ser sua amiga no MySpace.
Eu recusei.

1.3.07

As línguas dos outros

Título alternativo: A polidiota

Aprender uma língua nova quando não se precisa dela para nada dá um gozo do caraças. Para quem sempre foi uma menina da professora como eu e tem um certo jeito para línguas, pelo menos nos primeiros estágios de aprendizagem e sem contar com a pronúncia, é um capricho que não incomoda terceiros e nos afaga o ego sempre que a professora nos diz “muito bem”. Mesmo que isso não aconteça sempre. Além disso, torna-nos muito mais cultos. Saber como se diz caracol ou escadote em línguas que não falamos com ninguém faz-nos sentir um bocadinho superiores. Os professores de latim devem sentir o mesmo.
Mais divertido ainda é aprender uma língua nova a partir de uma língua estrangeira. À medida que os anos foram passando e me fui afastando da minha vida académica, fui perdendo a capacidade de manter os meus apontamentos organizadinhos, passadinhos a limpo todos os dias e com corzinhas um pouco gay para diferenciar a matéria-palha da matéria que saía para as frequências. Hoje em dia mantenho um caderno modesto comprado nos indianos e rabiscado com o utensílio que tiver à mão, caneta, lápis de carvão, lápis delineador de olhos, marcadores de cds, fósforos usados, onde me dou ao luxo de escrever os significados em três línguas diferentes, tipo totoloto. Não me quero gabar nem nada, mas vou escrevendo à medida que me vou lembrando das palavras e, se me lembro da palavra em duas línguas diferentes ao mesmo tempo, escrevo a que for mais pequena. Há quem lhe chame preguiça, mas eu gosto de dizer que sou uma amigalhaça do ambiente.
No entanto, sou uma aluna dedicada. Comprei um caderno de vocabulário, daqueles com as folhas divididas por uma linha, onde de um lado se escreve a palavra nova e do outro lado o significado e onde mantenho um registo um tanto ou quanto esquizofrénico de todas as palavras que me poderão dar jeito saber no dia do aniversário do rei. Quem olhar para o caderno de soslaio (no metro já apanhei uns quantos curiosos), fica com a impressão de que não estou lá muito segura da minha identidade linguística. Mas eu acho que há certas palavras, cujos significados correspondentes ficam melhor numa língua do que noutra. Tomemos o exemplo da palavra rata. Escrever de um lado rata e do outro “encontrar o caminho” é um tanto ou quanto estranho. Se bem que tenha o seu lado de verdade. Mas não vamos cair em vulgaridades, então. Optei, sabiamente, por escrever de um lado rata e do outro “den Weg finden”, assim como escrever de um lado kona e do outro “woman” (“Frau” era mais pequeno, noto agora que me descuidei). Deste modo, poupo a minha mente de pensamentos mundanos e concentro-me numa língua que, apesar de parecer ter origens ordinaronas, é uma senhora língua.
É claro que, apesar do meu ar sério, me divirto imenso em situações como a que descrevo a seguir.
- Como se pronuncia exactamente rata?
- Rata.
- Rata?
- Sim, rata.
- Rata, assim?
- Sim, rata.
- Ah, rata.
Depois calo-me bem caladinha porque há certas coisas que devemos guardar só para nós.