30.11.06

Deixai-nos ser as vossas groupies


Esqueçamos a música por uns momentos, passemos aos factos:
cinco homens de blazer e gravata a tocar guitarra em cima de um palco podem alterar irreversivelmente o rumo das fantasias sexuais dos elementos femininos presentes.

post indefinido

acabar um blogue é como deixar de fumar. ao princípio sentimos-lhe a falta, depois não sabemos o que fazer com as mãos. mas assim que o hábito se começa a desabituar, reparamos que temos, de repente, mais tempo

(e que as mãos também podem servir para escrever coisas a sério)

29.11.06

Curtas urbanas #1

Na paragem do eléctrico, um homem debruçado sobre um bloco de notas copia passagens de um livro rabiscado, as folhas dobradas. Escreve depressa, sem tempo para se sentar. Anotações feitas, guarda o caderno e o livro na mala que fecha com a violência de quem vê o eléctrico a chegar.

O homem vai e entra na estação de metro.

O M8 tarda ainda seis minutos de tabaco amarfanhado.

28.11.06

Os despojos do dia

Para o jantar, uns quantos fios de esparguete cozido e seis cogumelos anoréticos com o resto do molho de tomate. Como acompanhamento, o último ovo, mexido em manteiga de deitar fora. Para beber, o resto do sumo de banana-cereja nem chega para encher o copo. Como sobremesa, os últimos três quadradinhos de Milka com caramelo.
No fim, a boca a saber a pouco e a alma à espera da Postbahnhof. Não obstante, podes não ter os supermercados abertos até às 11 da noite, mas obrigada Berlim, por estares tão perto da Noruega.

26.11.06

Desconstrução

18:43
- É como aquela história do livro.
- Qual livro?
- Aquele que o alemão te deu.
- Não era um livro, era um calendário.
- Ou isso. Ele chegou a retribuir-te a chamada?
- Não.
- Se calhar não teve tempo.
- Se calhar.
- Ficaste triste?
- Não, mas não podes deixar as coisas a meio.
- Claro que podes. Não te esqueças que se pode sempre tudo. Dever já é outra coisa.
- É uma maneira de dizer as coisas.
- E gostaste do livro?
- Não era um livro, era um calendário.

17:58
- Às vezes precisamos de ir lá para fora durante dois minutos, respirar fundo e pensar bem naquilo que não queremos dizer. A falta de ar é a condição ideal para o ruíno da eloquência.
- Eu não sou um cabrão.
- Eu sei. Mas ela ainda não sabe isso. Dois meses não são suficientes para se conhecer alguém.
- Três meses.
- Seja como for. O tempo nunca chega para se conhecer alguém. Só chega o tempo para complicar.
- E esse vem logo de ICE.
- O segredo estaria em não ter relações que se pudessem complicar.
- Sim, já reparei que na tua história amorosa há sempre um padrão.
- Não foi sempre assim.
- É esse o meu medo.

16:15
- E, de resto, como te sentes?
- Com saudades.
- Porque tens uma palavra para as dizer?
- Curioso. De facto, do que tenho mais saudades é da língua.
- Da língua?
- Desculpe, vão fechar? Ah, parecia, como o café ficou de repente vazio... Pois, vão e vêm. É como as saudades. Nada, nada.

19:55
- Obrigada pelos conselhos.
- Soubesse eu dá-los a mim mesma.
- Sabes que me podes sempre telefonar?
- Eu sei.
- Mesmo que não queiras.
- Mesmo assim.
- E não vais querer.
- Talvez não. Mas é bom saber que posso.

16:25
- Não pões canela no pastel de nata?
- E porque é que haveria de pôr canela no pastel de nata?
- Porque fica melhor.
- Mas também sabe bem sem canela.
- Pois sabe, mas com canela sabe melhor.
- E porque é que havemos de disfarçar sempre o sabor das coisas?
- Pronto, então não ponhas canela.

19:59
- E agora, o que vais fazer?
- Não sei. Tinha pensado em ir para casa e escrever este diálogo. O que achas?
- Acho que fazes bem.

23.11.06

A intimidade do peido

O filme
Apesar de disfarçar clichés da sociedade moderna, The Last Kiss dá que pensar. Sobre o valor da amizade, sobre o medo de uma vida sem surpresas, sobre as dúvidas no amor, sobre os 30 anos não reflectirem os sonhos dos 15. Mas mais do que isso, este filme dá que pensar sobre a intimidade entre duas pessoas. Melhor dizendo, sobre o grau máximo de intimidade entre um casal. Mais concretamente, até onde se pode ir quando rapar os sovacos à frente do namorado se torna tão banal que até já nem é preciso esconder a gillette?

A cena
Quando Jenna lhe pede que conte o que tem andado a sufocar dentro de si e Michael manda um sonoro e aromático peido, é como se ele nos gritasse, mais alto do que o seu próprio traque, “Estão a ver, estão a ver, isto é o auge da intimidade!”. Como manda a regra, ela barafustou e disse “Ah, seu porco!”, mas o espectador sabe que ela até nem se importou muito com o sucedido, afinal são coisas do corpo, Jenna loves Michael e, não fosse o cheiro, pouca diferença haveria entre um arroto e um peido. São ambos sonoros, saem ambos de orifícios com ligação óbvia, sem entrar num, não sai do outro, e o que entra, acaba eventualmente por sair, quer queiramos, quer não, por isso não vale a pena esconder a verdade por entre manhas politicamente correctas. Quem disser que não gosta de se peidar, mente. Nem é uma questão de se gostar, é mesmo uma necessidade básica, animal, de aliviar o corpo de excessos. Ou há lá coisa melhor do que chegar a casa e tirar os sapatos?

A sabedoria popular
Uma das grandes preocupações dos casais modernos em que um deles sofre patologicamente de distúrbios gastro-intestinais, é mesmo o facto de ter de passar o resto da vida a conter-se ou então, no intervalo da novela, ir a correr para a casa-de-banho, esconder-se atrás da porta e rezar para que seja só uma bufa. Pois claro. Peido, que é peido, tem vontade própria. Não adianta escolher posição, pôr a mão atrás, dar ao autoclismo no momento de. Como diria o provérbio, peido contido, ruído assegurado.

Os factos
Um casal de Brandemburgo, ele alemão, ela portuguesa, daqueles casos de amor verdadeiro que só metem raiva, puseram os seus sentimentos à prova poucos dias antes do casamento quando se fecharam no carro e 1... 2... 3... desataram aos peidos. Vá, tu consegues. Ai, não sei. Então, não custa assim tanto, afinal não sobrou nada da feijoada que a minha mãe te fez, não acredito que não te consigas peidar. E ele lá conseguiu. Ela, ao sentir o cheiro, tentou não se rir, não lhe chamar nomes, não abrir a janela. Antes, inalou o cheiro como se do ar fresco da serra se tratasse. Assim estiveram, ora ele, ora ela, até se habituarem ao cheiro um do outro e consentirem em casar mesmo assim, depois de terem descido mais baixo do que às caves do vinho do Porto. Ora isto é bonito. Mas não é o ponto máximo da intimidade. Não, não é. A intimidade, a sra. Intimidade, quando já é tão grande que se crescer mais sai pelo tecto, atinge o seu ponto máximo durante a pedicure. É verdade. Especialmente se ele tem pés peludos e dedos tortos. Uma mulher que se ofereça para cortar as unhas do pés a um homem destes, ou a qualquer outro homem, é uma valente e, além do mais, ama como se ama inconsequentemente.
Depois disto, meus caros, não há peido nem arroto nem fetiches sexuais nem manchas no passado que assustem. Depois disto, meus amigos, está tudo fodido. Parece-me mesmo que depois disto não há mais nada.

20.11.06

Música rock



Em Populärmusik aus Vittula, o escritor sueco Mikael Niemi associa a música rock aos sons da terra. Numa passagem deliciosa, dois amigos adolescentes assistem ao espectáculo colossal de blocos de gelo gigantes que derretem com a chegada da Primavera. Enebriados com o concerto estrondoso proporcionado pela Natureza, Matti grita ao ouvido de Niila: "Rock´n´roll music!"

Arrisco-me a dizer que ninguém o descreveria melhor.

16.11.06

U2

Se os vendedores da CAIS adoptassem a estratégia das rimas engraçadas e trocadalhos do carilho como se ouviu hoje a um vendedor da revista-irmã Die Stütze, não só ganhariam mais trocos, como fariam os utentes do metro muito mais felizes.

14.11.06

Dress Code

Uma das observações típicas sobre a aparência dos alemães recai na despreocupação com a apresentação pessoal. Não é raro ouvir dizer de franceses, italianos e portugueses que os alemães se vestem mal, são desleixados e mesmo pouco asseados. Como exemplos mais imediatos, temos o cliché da meia branca com sandálias e o sovaco feminino que não é depilado. É verdade, o alemão da classe média não gosta de ter o pé ao léu e mulheres peludas proliferam nos ginásios mais sofisticados. Mas quanto às acusações de falta de higiene ou desleixo já serão as más línguas a falar. Ou tiveram muito azar e apanharam mais do que seis mendigos no metro ou são povos cujas nações actuais pouco podem acrescentar à deutsche Technologie e que não entendem que um país que tem um tempo de merda não pode andar empinocado nos dias de degelo, em que andar na rua e não sujar mais do que 10 centímetros da bainha é uma autêntica aventura. No Verão, o calor chega a ser insuportável e é perfeitamente normal que os milhares de ciclistas que atravessam a cidade diariamente cheirem um pouco mal ao fim do dia. Além disso, não se deve esquecer o peso da palavra gemütlich (acolhedor, numa tradução paupérrima). Há que andar confortável, se possível com a mesma roupa durante vários dias, porque isto de ir à lavandaria todas as semanas tem o que se lhe diga. Por outras palavras, os alemães são um povo de costumes práticos. Esqueçamos o fanatismo da burocracia e da organização por uns momentos.

Três anos depois, uma portuguesa habitua-se a ir a uma discoteca e não se vestir para o engate. Os alemães engatam tão subtilmente que nem o decote mais profundo exerce o fascínio que em países do sul da Europa chega a ser enfastiante. Aliás, o caso alemão chega a ser tão grave que pode originar profundas crises existenciais em mulheres latinas, mas isto fica para uma outra crónica. No seio da faixa indie, o mote é arranjar-se de modo a que pareça desleixe. Uma miúda mal vestida pode perfeitamente ter passado horas em frente ao espelho até criar a aparência desejada. Mas a grande maioria das pessoas sai à noite com a roupa com que andou durante o dia, seja lá ela qual for. E isso é o espírito da descontracção.

Eis quando um convite da Embaixada de Portugal espera na caixa do correio. Dá-se uma vista de olhos ao interessante programa do simpósio no Museu de História Alemã e sacode-se imediatamente da ideia a remota possibilidade de poder ir de ténis a semelhante evento cheio de portugueses horrorizados pela indumentária alheia. Um relance ao roupeiro chega, no entanto, para atirar o convite para o lixo.
Pindérica, és uma pindérica.

10.11.06

Prólogo

É sexta-feira de um dia qualquer. O escuro de cinco dias de trabalho ilumina-se de fim-de-semana. Os eléctricos que passam no Hackescher Markt já levam as luzes acesas, são apenas cinco da tarde. A esta hora, mais pessoas nos cafés do que nas ruas, os casacos que se despem, o Outono que fica à borda da chávena de Milchkaffee. Um homem moreno sentado ao balcão do Gorki Park olha, curioso. O jornal aberto na página para os cinéfilos de corrida, o cigarro que espera, impaciente, inclinado no cinzeiro. Olhos que se desviam quando a porta se abre para o frio da tarde.
Às seis elas já esperam no banco da estação de metro. Uma cara conhecida, outra reencontrada. Que fazes por Berlim. Que engraçado, conheci-te nesta mesma cidade há quatro anos atrás. Cinco. E ficaste desde então. Não, voltei. É sempre melhor quando se volta.
Numa noite ao acaso num sótão de um bar cheio de gente que finge não ser solitária, a conversa acaba com um copo cheio de momentos para chegar e partir, de pés, uns no berço e outros no destino. Depois de três anos já a novidade deixa de o ser. A cidade começa a adquirir a garantia dos pronomes possessivos. E Lisboa? Lisboa é linda. Mas Berlim não se explica.
Às dez da noite aconchegamos o frio nos casacos. A hora chega com outros planos para os rostos que se despedem. Foi bom ter-te reencontrado. Às vezes penso se o mundo não será realmente pequeno. Sorrisos.
A Oranienburger Strasse divaga as pessoas que a percorrem, amantes de mãos dadas e turistas com rumos de guias turísticos, prostitutas de corpetes brancos seduzem machos desprevenidos, a Sinagoga vigia polícias enfastiados. O libanês do fim da rua enche-se de Lebenskünstler, artistas da vida que consolam o estômago por três euros. Ao fundo, a Fernsehturm, a versão light de um big brother imaginário. Faltam dez minutos para o próximo metro, pouco depois começam a escrever-se crónicas de Berlim. É sexta-feira de uma noite qualquer.