20.2.07

As portas de Berlim - parte IV

Frankfurter Tor

- Em que é que estás a pensar?
- Não sei, diz-me tu, que dás pelo nome de consciência.
Penso nele enquanto lavo os dentes. Gostava de não pensar tanto nele. Esfrego os dentes com mais força até começar a sangrar das gengivas e salpico o espelho. Quando penso nele penso sempre no outro. Um e o outro são a mesma memória. De vez em quando dá uma música na rádio que me faz lembrar, ele que me faz lembrar o outro. Uma memória despoletada por outra. Uma só música para duas pessoas tão diferentes. Uma coincidência desnecessária.


À entrada de Friedrichshain esperavas por mim. Quando me viste cumprimentaste-me com o cigarro pisado no asfalto. Seguimos a rua até um beco, havia um bar novo que queríamos espreitar. Entra-se por um buraco no chão, disseste-me, aliás o bar é um buraco, um antro sem ventilação que cheira a álcool, tabaco e suor.
A mim cheirou-me mais a solidão quando me disseste que seria a última vez que nos iríamos ver. Não para sempre, o que é isso, para sempre, se calhar ainda volto, quando voltar ainda nos podemos ver, mas será a última vez até à próxima. Não vais sentir falta de mim porque não tiveste tempo para te habituares a mim. Obriguei-te a sentires-me longe antes de me teres por perto. Não fiques triste, sabes que é melhor assim.

Nessa noite amei-te a sério. Tu não sabes, claro. Porque eu não fui eu, eu fui outra. Estou agora aqui a pensar em tudo o que não te disse, em tudo o que não me disseste, em tudo o que poderá ser dito um dia. Provavelmente não. O nunca é tarde demais. Para sempre é também demasiado tempo. Nunca e para sempre são antagonicamente a mesma coisa. Nunca te amei. Amar-te-ei para sempre. Vejo-te em todo o lado mas não sei onde estás. De qualquer maneira, já vivemos o presente: o futuro do passado. Não nos resta mais nada.

Quando apagaste o cigarro com o pé, estavas a apagar tudo o que ia ficar por dizer nessa noite. Tinhas acabado de acender o cigarro e deitaste-o fora à primeira visão de mim, deitaste-o fora, pisaste-o, apagaste-o, apagaste um encadeamento de frases a que se chamam conversas. Nessa noite começámos pelo fim: os nossos sonhos acabaram antes de terem começado. Agora já não vale a pena tentar dormir.

Mesmo assim, foi bom ter-te conhecido.

2 Kommentare:

Anonymous Anonym meinte...

O texto faz lembrar aquele poema do Mário de Sá Carneiro, O outro. Mas desta vez não és qualquer coisa de intermédio, eras apenas a outra. Com o outro. Curioso, não?

12:30 PM  
Blogger Frau K. meinte...

como ?!?

8:20 PM  

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