6.2.07

As portas de Berlim - parte II

Brandenburger Tor

Estavam sentados na esplanada do café Einstein, de costas para o Brandenburger Tor.
- Afinal o que é que vieste cá fazer? – perguntou ela, os olhos escondidos atrás dos óculos de sol, depois de acabar o café e acender o segundo cigarro.
- De férias, já disse – respondeu ele, encostando-se para trás.
- O que eu queria perguntar era porque é que vieste cá de férias e me telefonaste. Porque é que quiseste vir a um sítio onde um café custa quase tanto como um jantar no chinês.
- Exactamente por isso, por nunca aqui vires. Queria que o reencontro fosse inesquecível, nem que fosse pelo preço do café.
- Se me pagares o café, prometo-te que não esqueço esta tarde.
- Tu nunca me esqueceste, escusas de estar com essas merdas.
Ela olhou para o lado como que para arranjar coragem para falar outra vez.
- No outro dia entrei num café e sentei-me ao lado de um velho. Lia o jornal e deixava um cigarro fumar-se a si mesmo no cinzeiro. Como aquelas pessoas que deixam de fumar mas precisam de ter um cigarro na mão. Aquele precisava de ter um cigarro aceso no cinzeiro. Tinha a barba por fazer, mas usava fato e gravata. Pura mania de velho, creio. Olhei várias vezes para ele até concluir quem é que ele me fazia lembrar. Tu.
- Eu?
- Sim, tu daqui a 40 anos, velho e ressequido, mas com a mania que continua a ser um grande garanhão.
- E depois? - perguntou ele, sem esconder um sorriso malicioso.
- Depois falei com ele. Disse-lhe que me fazia lembrar uma pessoa quando tivesse a idade dele. E perguntei-lhe se continuava a ser um cabrão ou se a idade lhe tinha perdoado a juventude.

... apesar dos anos, apesar das dores, apesar da solidão, apesar dos filhos não quererem saber dele, apesar de apesar de pesar tanto esta cruz.
Velhos como ele, que começam o dia sem nada para fazer, juntam-se todos os dias no largo do Brandenburger Tor. Velhos reformados, agora senhores do seu tempo, com o tempo nas mãos, as mãos no tempo, o tempo a fugir-lhes das mãos, como é injusta esta vida, passa uma pessoa uma vida inteira a trabalhar, os dias cheios de nada, a chegar a casa e ter de cuidar dos filhos, a esfregar, a limpar, a cozinhar, a aturar o marido, a aturar a mulher, a martelar, a furar, a castigar os filhos, a castigar-se a si próprio por perder tempo com coisas supérfluas sem se dar conta disso e depois, mais perto da morte, quando os dias começam a fazer tic-tac como o relógio lá de casa, têm de repente todo o tempo do mundo para ler todos os livros, para ouvir todas as partituras, para bordarem todos os folhos de lençóis (e a filha sempre: ó mãe, que foleiro!), para subirem montanhas, para isso tudo e para nada disso porque, como é injusta esta vida, os olhos já não deixam, os ouvidos já não são o que eram, as mãos já tremem, as pernas já doem, o relógio bate a meia-noite e foi mais um dia que passou depressa demais. Todos os dias, quer chova, quer faça sol, às vezes quando neva também, lá vão eles. São uns destemidos estes velhos, se calhar uma pessoa chega aos 60 anos e perde a razão de ter medo da vida, que o assusta a sério é a morte...

- Sabes que às vezes sonho contigo – disse ele - Vejo-nos velhos deitados na cama à espera que o sono chegue.
- E depois acordas e ficas contente por não ter passado de um sonho.
- Mais ou menos isso.
- Por seres um velho ou por seres velho ao meu lado?

Se cá ficar, se cá ficasse, ver-me-ia também a mim a passar no Brandenburger Tor daqui a muitos anos, provavelmente anos demais para os meus cabelos, ainda hoje olhei ao espelho e vi mais outro cabelo branco, e a dizer às minhas amigas, francesas, italianas, espanholas, turcas, polacas, que os tempos serão outros e serão tempos de Berlim dar ordem de despejo aos berlinenses, se isto hoje já anda cheio de estrangeiros, imagine-se o que será em 2047, lembram-se da Love Parade de 2001, do Mundial de 2006, dos concertos à pala e das manifestações contra o Bush, do Live8 e da Gay Parade e elas, sim, que belos tempos, mas ninguém falará da queda do Muro, de como multidões se haviam juntado ali há 60 anos e festejado, ou não, e buzinado, ou não, e abraçado o próximo, ou não, que nem toda a gente ficou feliz com o feito. Ninguém fala disso, porque seremos todas novas demais. Apesar de já sermos tão velhas. Teremos toda a idade de quem não chegou a assistir a acontecimentos realmente importantes, de quem passou a vida a lutar por si e não pelos outros, se quem viu o mundo a cair, a ir caindo, sem propósito, sem princípios, sem alegria, apenas o tempo de dizer adeus depois da caminhada com medo de não estarmos todas juntas amanhã de manhã, de nos deitarmos à espera que o sono recupere da Parkinson e não acordarmos mais.

Ela apagou o cigarro no cinzeiro, apagou-o bem, não queria que ficasse aceso quando se fosse embora, um descuido, um descuido que fosse e estava arruinada.
- É engraçado, porque eu também já tive esse sonho uma vez. Mas em vez do sono, quem se levanta do cadeirão e vem ter connosco é a morte. O sono eterno.
e nós julgamos que é o sono, tão disfarçadas são as coisas que não queremos ver
- E depois acordas e ficas contente porque não passou de um sonho.
- Mais ou menos isso - tirou os óculos de sol pela primeira vez nessa tarde e olhou-o bem no fundo dos olhos – Acordo e fico contente porque tu morreste primeiro do que eu.

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