29.1.07

As portas de Berlim - Parte I

Oranienburger Tor

Foi no Tacheles que fizemos as pazes. Tínhamos discutido bastante nessa noite. Queria ir ao cinema, depois já não queria ir ao cinema. Queria uma cerveja, depois já não queria uma cerveja. Mandava para trás tudo o que pedia, chamava a empregada e marcava mais um ponto na lista de clientes não desejados. Eu bem lhe disse que não queria ir àquele bar, mas ele insistiu
- Eu convido-te
Não era pelo dinheiro, mas os homens às vezes gostam mesmo de passar por broncos. Encolhi os ombros e deixei-o pagar-me a entrada, a cerveja, as cervejas, o que mais houvesse, desde que me pudesse mostrar o seu cartão de crédito internacional. Sim, eu sei que não és nenhum pobretanas. Os homens às vezes gostam mesmo de ser broncos. Eu olhava pela janela enquanto ele falava primeiro disto, depois daquilo, depois voltava ao aqueloutro do início da conversa, deixando-me baralhada e sem vontade de responder a perguntas sem nexo. Quando começou a barafustar com a empregada que já nos tinha dito duas vezes que, se fizéssemos a gentileza, já passava da hora de fecho, eu
- Vamos embora
percebi que não ia aguentar muito mais tempo calada
- Por favor
que tudo o que os coreanos me tinham ensinado (a ser amável mesmo para os cabrões dos clientes que nos olhavam como se nos furassem a pele de tão transparentes que éramos, a ser superior a todos aqueles fachistas de merda que mediam a sua superioridade pelo tamanho da gorjeta que deixavam na mesa, a aprender a levar as coisas com a calma de quem não tem muito tempo para se chatear com o que não nos faz felizes, ignora, ignora, tu sabes que és melhor que esta gente que demora duas horas em frente ao espelho para terem o aspecto desleixado que tu tens quando sais da cama), que todos os exercícios de respiração zen praticados ao longo de um ano, do primeiro ano, do ano que é sempre o mais difícil, estavam prestes a desfazer-se no frio da noite, que estava em vias de perder a compostura, a paciência, a pose de gaja cool para quem tudo está bem, para quem todos os maneirismos daquele gajo não passavam de tiques nervosos de um homem que, perante alguém como eu, alguém que parece não estar ali, se esquece como é que se engata uma mulher e acaba por fazer tudo mal. Os homens às vezes são mesmo broncos.
Saí como um relâmpago, deixando-o com a cerveja a meio, desci o elevador, atravessei a praça, enfiei por uma ruela contrária à direcção que queria levar. Talvez (porque) esperasse que ele me seguisse, que quando, nos semáforos, olhasse para um lado e depois para o outro, ele estivesse ali e atravessasse a rua comigo e eu pudesse finalmente gritar
- Estúpido, que és um estúpido, fizeste tudo mal
e continuasse a discutir até à Friedrichstrasse, a andar-a-correr, a gesticular, a afastar os cabelos da cara com a fúria destinada a afastá-lo de mim, és um idiota, afinal de que te servem os 30 anos, tanta segurança, tanta pompa e no fim és igual a todos os putos que conheci até agora.
Quando passámos o rio, ele começou a deixar cair as palavras, os braços, a respirar fundo, a dar-me razão. Tentei não lhe ligar, descer depressa as escadas da estação de Oranienburger Tor e entrar nas portas escancaradas do metro quando
- Desculpa
ele me pegou na mão
- Desculpa
e eu ainda resisti
- Desculpa
e ele chamou-me aquele nome que não podia saber porque não falava a minha língua.

Fui com ele para o Tacheles. Ele bebeu uma cerveja e não discutiu com o empregado. Deixou-me escolher o lugar ao balcão e fez-me perguntas verdadeiras. Deixou-me fumar o maço todo e nunca mais mencionou a minha idade. Nem a dele. Fez isso tudo e fez-me começar finalmente a olhar para a mão dele a segurar a garrafa de cerveja (para que não tremesse), e para os lábios dele (que olhavam para dentro dos meus olhos), e para a outra mão a passar pela cabeça calva (quando me sentia a mexer-me no banco), e para os pêlos do peito que lhe saíam por fora da camisa (o segundo botão aberto para que nunca se esquecesse do macho que era), e num repente ele a dizer-me
- Du bist wunderschön!
És linda. Estás linda. Não cheguei a perceber. Disse-o na língua que não era de nenhum dos dois para me baralhar, para juntar dois verbos e esconder o significado real do que queria dizer, se eu era sempre linda, se estava linda apenas hoje (que não se repita!), eu ainda de faces ruborizadas, de espírito cansado, de sentidos trocados, queres-me, não te quero, não me queres, quero-te.
Nessa noite levou-me ao metro. Havia de me levar ao metro muitas noites seguidas, até que não aguentasse mais e entrasse comigo numa carruagem com cheiro a sexo. Mesmo que eu lhe dissesse
- Não preciso que me acompanhes
ele insistia em entregar-me sã e salva, salva dele, quem sabe, salva de mim, sei-o eu. Eu acabava por deixar porque gostava de o ouvir recitar poesias de espelho, tão perfeitas que lhe perdoava a falta de espontaneidade.

Andámos a salvar-nos um do outro durante quase um ano. Um dia, não aguentámos mais e deixámos de ensaiar. Quando discutimos pela segunda vez, com a mesma paixão da primeira, não fizemos as pazes no Tacheles. Passámos pela Oranienburger Tor e seguimos em frente.
(o terceiro botão aberto para que nunca me esqueça do macho que és)

0 Kommentare:

Kommentar veröffentlichen

Abonnieren Kommentare zum Post [Atom]

<< Startseite