11.1.07

Os pensamentos do silêncio

Estávamos para ali sentados à espera do jantar e senti-o a olhar para mim. Estava só a olhar. Estava a olhar só. Só estava a olhar. Não estava a olhar para mim para me engatar, eu até já conheci a namorada dele, não era um olhar guloso, daqueles papava-te toda, esses olhares só me dão para duas coisas, ou deixo que me papem ou saio porta fora, também não era um olhar curioso. Era apenas um olhar.
Gostava de saber o que é que as pessoas pensam de mim quando se sentam à minha frente num restaurante de comida rápida de segunda categoria, o restaurante e a comida. Será que pensam nos meus olhos ou nas minhas mamas ou na minha inteligência duvidosa ou na sinceridade dos meus gestos ou em apenas como sou uma grande convencida por querer dar a entender que me estou a cagar para tudo quando, por vezes, nem sequer tenho conversa. Já não é a primeira vez que me dizem que sou uma gaja calada. É porque deve ser verdade. Eu costumo brincar com o facto de que não sou nada eloquente e que o silêncio é de ouro e a palavra de pechisbeque, mas acho que ninguém acredita em mim. Sou calada, porque sim. Porque isto de ser filha única havia de ter os seus reveses, foram tantas as vezes em que tive de brincar sozinha com a Barbie que às tantas o Ken nas mãos das outras miúdas ficava a parecer o Chico da Tasca.

A verdade é que eu penso muito. Quando me perguntam em que é que eu estou a pensar, respondo sempre, em nada. Às vezes é verdade. A maior parte das vezes não. Mas ou são pensamentos altamente escabrosos ou histórias da carochinha que não interessam nem aos reis magos. Abrir a boca nesses momentos seria o caminho ideal para pensarem que sou tontinha de todo.
Tinha um amigo, por onde andas tu, que, apesar de falar pelos cotovelos e pelas mãos e pelas unhas dos dedos mindinhos, adorava os meus silêncios. Achava-os altamente intelectuais, talvez por isso me tenha puxado um dia para um café em Kreuzberg e me tenha anunciado, assim, anunciado, que queria ir para a cama comigo. Quando me calei e fixei o olhar no copo de coca-cola à minha frente, já não me lembro se era dele, se era meu, não, era meu, ele assumiu o meu silêncio como um sim e eu não tive coragem de lhe dizer que na verdade, não era nem sim nem não, era qualquer coisa lá no meio que eu não sabia muito bem definir o quê. É claro que nunca lhe disse isto e o que se passou a seguir não interessa.
Sigo com a minha vida. Mesmo estando a chover.

Prefiro ficar calada e que os outros falem por mim. Já basta ter um trabalho em que me pagam para falar e para entreter e para ensinar aquilo que eu ainda vou fazendo melhor, enquanto eu, como ontem, que quase pagava para ficar calada, começo a pensar noutras coisas, como em sexo e no tempo, amanhã sem falta reservar a mesa para domingo, mas continuo a falar e a fazer perguntas, então, e tu, diz-me lá o que achas disto, e admirar-me com o facto de conseguir concentrar o cérebro em tarefas tão distintas e de ninguém dar por nada, ir à casa-de-banho respirar fundo e pensar que ainda já só faltam quase duas horas inteiras.

E estava eu ali, naquele restaurante cheio de correntes de ar, a bater o cigarro no cinzeiro, e aquele gajo de barbas a olhar para mim, sempre gostei de gajos barbudos, mas este não, este tem namorada e eu até já a conheci, e o gajo continua a olhar para mim e eu já não sei bem o que fazer sem ser continuar a chupar o cigarro e a batê-lo no cinzeiro como se disso dependesse a minha vida. Ia lá eu saber que isso me estava a matar lentamente. Até que chega a comida, eu fumo o cigarro até ao fim, digo-lhe que pode começar a comer, que eu não me preocupo nada com essas coisas, e finalmente começamos a falar de uma coisa que me interessa. E sobre a qual eu até sei umas coisinhas. E lá começo a debitar. Ele olha-me espantado e aqui deve estar a pensar, mas esta gaja até tem miolos. Não são muitos, os que tinha até há uns anos atrás já estão todos fritos que nem pescadinhas de rabo na boca, mas ainda vai dando para dar uma de gaja esperta. Lá continuamos a falar até que mudamos de assunto. O molho a escorrer-me da boca e eu a limpá-lo com a mão, feita javarda, e a pensar exactamente nisso, no molho e na minha javardice, devo ter os dentes cheios de coisinhas pretas, é melhor não me rir, olha que se foda, rio-me só para provar a mim própria que sou capaz, sou, e os meus dentes cheios de coisinhas pretas.

- Já não fumo disso há uma porrada de tempo.
- Deixaste de fumar, foi?
- Foi. Agora tornei-me alcoólica.
E ele esteve quase, quase a acreditar.
Dei-lhe uma palmadinha no braço, a minha mão gordurosa do molho, e disse-lhe:
- Não te preocupes. Eu sou tão normal que até mete nojo.

4 Kommentare:

Blogger K meinte...

já te disse o quanto gosto de te ler? se não, ficou dito. e olha que sou capaz de me repetir até à exaustão!

(e nos teus silêncios? falas contigo?)

11:38 PM  
Blogger Frau K. meinte...

:)

(às vezes)

8:12 AM  
Blogger MP meinte...

Muito bom mesmo.

Acho que deves conseguir passar por ter mais do que apenas alguns miolos.

Às vezes és mesmo cruel na forma como envergonhas os outros blogs. Superficiais; ocos; despropositados...

Gosto muito do que escreves, e de como o escreves.

5:52 PM  
Blogger blindness meinte...

Olhares, pensamentos e silêncios.
Eu, que penso ser alguém que nunca fui. Outros que pensam de mim algo que nunca serei. A vida resumida num texto.

Gostei muito. Sobretudo das (aparentes) contradições, que nos fazem ser quem realmente somos, e mais "normais" do que gostaríamos. O que não deixa de ser (estranhamente) reconfortante...

12:23 PM  

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