21.12.06

Memórias de uma ausência III

Triologia



Pego no carro e vou para Lisboa. O meu pai ainda vem à porta ver-me partir, deve ter medo que me vá embora antes sequer de ter chegado. Ainda não cheguei, pai, deixa-me ver Lisboa primeiro. A gata também vem à porta, assoma-se ao portão e vira o focinho para o lado oposto. Má, és uma má. Eu? Tu é que te foste embora.
A A1 igual, cheia de ultrapassagens com pressa. Eu vou devagar no primeiro dia, quero ver tudo, os prédios altos, amarfanhados de classes médias, o lar de Betel para quem ainda gosta de dar nomes à esperança, o Tejo que me acompanha até Lisboa, as luzes da Cimpor à saída de Vila Franca, sempre quis parar aqui e tirar uma fotografia. E se virasse nesta saída? Não, afinal de contas Alhandra é tão feia.
No auto-rádio a compilação que trouxe de Berlim. Uma compilação em cassete, como antigamente, um antigamente ridiculamente recente. Avó, como estás? Ainda te lembras de mim? Tenho medo de te ir visitar. Juro que tenho. A minha mãe não entende, pensa que eu não te quero ver, e é verdade, não quero, mas é apenas por gostar muito de ti, tanto, e não te querer ver morrer. Nunca ninguém entende o sofrimento calado. Como o teu. As pessoas dizem-me sempre que devias morrer depressa, para não sofreres mais. Eu não consigo dizer isso. Avó, morre. Não morras. Merda.
Lisboa perto. Esta parte, esta circunvalação, mas o que raio é uma circunvalação, de qualquer maneira, este bocado aqui faz-me sempre lembrar qualquer coisa. Uma viagem que uma vez fiz, no meio de tantas outras iguais, mas esta, porra, esta tinha de ficar na memória, maldita memória selectiva que só funciona quando quer. Ainda me lembro da música que estava a ouvir. Depois disso ouvi-a tanta vez até me esquecer de me lembrar do que me lembrava o raio da música. Mas por muitas vezes que passe aqui nunca me hei-de esquecer. É por isso que Lisboa me dá tanto medo. Em Berlim é muito mais fácil esquecer. Berlim é grande. Lisboa não. Mas é tão bonita. Lisboa. Lis-boa. Lissabon. Li-s-boa. Digo-te o nome tantas vezes que me esqueço de ligar os piscas para o Campo Grande. Isso, apita, caralho. Esta gente não sabe ter bons modos.
O meu pai volta para casa, a gata atrapalha-lhe as pernas, fecha-se a porta. A luz de fora fica acesa para quando eu chegar. Eu chegarei muito tarde, mas ao menos vejo por onde passo. Já nunca me lembro que o raio da buganvília está no meio do caminho. O que raio é uma buganvília? De qualquer maneira, a luz dá jeito. Antes ainda tiro o saco do pão que alguém prendeu ao portão. Os meus pais moram no raio de um sítio onde alguém prende o pão aos portões das pessoas. Todas as pessoas na terra onde os meus pais moram têm casas com portões. Eu não gosto de casas com portões. Demora-se tanto tempo para se sentir que se saíu de casa. Demora-se tanto tempo para se chegar a Lisboa. Lis-boa. L-i-s-b-o-a. És tão bonita, Lisboa. E agora estaciono a porra do carro onde?

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