20.12.06

Memórias de uma ausência II

Triologia


A casa fria, apesar da lareira acesa. O meu pai atiça o fogo com a dedicação de um chefe de família. Nos entretantos senta-se, arranja a gata no colo, abre o Lobo Antunes numa página qualquer e lê. De óculos a branquearem-lhe o cabelo, eu já lhe disse que aqueles óculos o fazem mais velho, mas ele não quer saber. É um castiço o meu pai. Lê Lobo Antunes e diz que o entende. Eu mordo-me a inveja.
A minha mãe, na outra ponta do sofá, olha para a televisão de braços a apoiarem o cadeirão, dantes fazia renda, agora os olhos já não a deixam, os óculos também lhe branqueariam os cabelos se não os pintasse, porque é que os pais teimam sempre em deixar-se envelhecer? Eu, geralmente no meio, a desejar um sofá de três lugares só para mim. Já me desabituei de sofás, televisão, serões em família. Nos primeiros minutos aprecio o convívio, como quem não sabe que daí a nada já estou farta. Pego no comando, pergunto se posso ver o que está a dar num dos canais da TV Cabo, qualquer um.
O meu pai levanta os olhos do Lobo Antunes.
- Então e conta lá como te está a correr a vida.
- Eu quero ver a novela.
- A vida não corre, vai andando, ou nunca te disseram isso?
- Mas vai andando depressa ou devagar?
- Eu já te disse que quero ver a novela.
- Mãe, não sejas chata. Pois a vida vai andando conforme as minhas pernas deixam. Já tenho varizes, sabias.
- Pois, isto a idade não perdoa. Estás mesmo velha, tu.
Ri-se e volta a trocar-me pelo médico Antunes.
A minha mãe continua a queixar-se, não percebe que a novela é só uma desculpa para lhes deixar o sofá vago. Tens tanto tempo para ver a novela, porra.

No meu quarto, nada. Volto a abrir as portas do armário branco, pela segunda vez nesse dia, olho sempre para os meus livros muitas vezes no dia em que os reencontro. Já li estes livros todos. Será das coisas que tenho mais saudades do meu quarto. Ordenados por língua, aí estão os livros que eu não levei comigo. Porque gosto de os reencontrar. De vez em quando peço à minha mãe para ver se estão bem, os livros, no mesmo sítio, se já têm as folhas amarelecidas, não passou tanto tempo assim, filha.
No sótão há mais livros. Não meus, mas também costumo subir e ver como estão. A estes sim, o tempo coloriu-lhes as folhas. Eça, Austen, Dickens, Zweig. Não sei se os meus pais os leram alguma vez. Compraram-nos no Círculo de Leitores há muito tempo para mim, ainda eu não sabia que tinha nascido. Já mais crescida, quando pensava ser crescida o suficiente, ia para o sótão, a gata atrás de mim, enroscava-me no sofá ao lado da máquina de costura e punha-me a ler. Tudo. Qualquer coisa. Menos Austen. Não sei porquê. Até que a minha mãe viesse ralhar comigo. São horas de dormir.

Quando a novela acaba, a minha mãe chama-me. Agora não, tenho sono. Filha, nunca nos fazes companhia.

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