3.12.06

Lugar de passagem

Acabou a noite a ver o filme e a recordar os diálogos que tiveram depois de irem para casa, não se lembrava se estava a chover se não, é que podia ser importante. Se estava a chover, deixava-a à porta de casa, ia estacionar o carro e voltava a correr, com o casaco sobre a cabeça, entrava no prédio, subia os degraus dois a dois, fechava a porta e dizia
- Está um tempo de merda!
atirando o casaco para cima do sofá. O casaco molhado.
Faziam amor, nem sempre logo a seguir, isso dependia da urgência da paixão, com o coração na alma e as mãos dela pelo corpo dele e as mãos dele pelo corpo dela e tudo o resto era nada. Por vezes, antes ainda viam um pouco de televisão, um programa pior do que a merda do tempo, comiam qualquer coisa ou bebiam um copo de vinho. Depois do telefonema da mãe
- Sim, já cheguei, está tudo bem. Agora vou dormir.
outros tempos em que a mãe sabia mas fingia sempre que não sabia e ia, ela sim, dormir, com a mesma preocupação com que tinha acordado,
talvez fumassem um charro, houve uma altura em que fumavam muitos, ela precisava de se rir, ele nunca lhe perguntou porquê.
No dia depois deste filme tiveram uma conversa especial, mas depois de tantos anos a tentar esquecer, ela já não se conseguia lembrar sobre o quê. Talvez tenha sido o dia em que ele lhe pediu que nunca o abandonasse, abraçado a ela como se ela fosse saltar do varandim, deixa-te estar, não te vás embora, preciso de ti, foi isto que lhe disse, preciso de ti, ela riu-se e respondeu
- Mas estás parvo?
com a descontracção de quem queria disfarçar o medo que fosse ao contrário, que fosse ele a abandoná-la a ela. Como aconteceu, um dia do nada, como acontece do nada tudo o que deixa nódoas na carpete. Nesse dia ela chorou como choram as crianças, mas aqui ela ainda não sabia disso, que seria ele a abandoná-la pouco depois, num tempo ridiculamente curto para se mudar de opinião, e abraçou-o, dizendo-lhe
- Gosto tanto de ti.
Ou talvez tenha sido o dia em que ele lhe disse que haviam de ficar juntos para sempre. Para sempre, como se falasse sério, como dizia todas as coisas quando as dizia a sério, a determinação de quem pensava saber o futuro lido de graça.
Ou talvez não tenha sido nada disto. Talvez tenha sido uma conversa banal, sobre o filme e a banda sonora, que ela compraria pouco depois e ele gravaria ainda muito depois, havia qualquer coisa entre eles que os impedia de gostar das mesmas coisas ao mesmo tempo.
Alguns anos depois, depois desta história ter acabado, recomeçado, acabado uma segunda vez, e no meio muitos outros sub-plots que só causam fastio a quem se lembra deles, ela compraria o dvd, mas não o veria logo. Guardá-lo-ia no meio dos outros dvds, como se guardam as coisas que se destinam à banalidade, e só o veria no dia a seguir a ter contado a sua vida a uma desconhecida. É o que vale nesta cidade, em que as pessoas que se encontram estão sempre de chegada ou de partida. Um desconhecido, de bagagem aviada, já se terá esquecido da conversa logo a seguir às primeiras frases.
Depois de ver o filme, ouviu a banda sonora. Bebeu um copo de vinho, dois, fumou um cigarro, dois. E depois de todos os demónios terem saído, levantou-se.


De cabelo atrás das orelhas, uma mão a agarrar a garrafa de cerveja e a outra a pedir-me um cigarro, contou-me isto porque pensava que eu o iria esquecer. Tinhamo-nos acabado de conhecer, talvez tivessem passado uns trinta minutos de conversa iniciática
- A tua cara não me é estranha, se calhar já nos encontrámos antes?
- Há quem esqueça os encontros que só mais tarde fazem sentido, mas desta vez não creio ser o caso.
sentámo-nos longe dos outros e ela começou a contar-me, já não me lembro porquê, se calhar começo mesmo a esquecer quando, neste momento, ela já deve estar a fazer as malas, eu só farei as minhas daqui a algumas semanas, não para partir de vez, ainda não.
Mas eu não esqueci tudo. Não se esquece a história da vida dos outros quando é tão estupidamente parecida com a nossa. Cheguei a casa, tarde e com os membros torpes da cerveja, o trajecto desta vez mais curto, a música em repeat só tocou cinco vezes, sempre a mesma música desde há uns dias, e acabei a noite a ver um certo filme. Talvez não o mesmo, certamente outro. Talvez na história desta minha desconhecida não tenha entrado um filme, havia sim, os mesmos demónios, de capa vermelha e cornos afiados, os caninos saídos para fora, o babete salivado de maldade insolente, de malas e bagagens, prontos a fazer sala. Convidei-os a sentarem-se, ofereci-lhes café, que quem trabalha não deve beber. Disse-lhes que podiam estar o tempo que fosse preciso, o que tem de ser tem muita força e há coisas que é melhor serem o mais depressa possível, mas eu sabia que não iriam tardar muito. Em Berlim, que é uma cidade de passagem, nem o diabo fica muito tempo. Bebi um copo de vinho, dois, fumei um cigarro, dois. E, depois de todos os demónios terem saído, fui-me deitar.

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